bestas saltando ao longo do tempo -

Van Gogh escrevendo ao irmão pedindo tintas
Hemingway testando sua espingarda
Céline falindo como médico
a impossibilidade de ser humano
Villon expulso de Paris por ser um ladrão
Faulkner bêbado nas sarjetas de sua cidade
a impossibilidade de ser humano
Burroughs matando a esposa com uma arma
Mailer esfaqueando a dele
a impossibilidade de ser humano
Maupassant enlouquecendo num barco a remo
Dostoiévski enfileirado num muro para ser fuzilado
Crane pulando de um barco na voragem da hélice
a impossibilidade
Sylvia com a cabeça no forno como batata assada
Harry Crosby saltando naquele Sol Negro
Lorca assassinado na estrada pelos soldados espanhóis
a impossibilidade
Artaud sentado num banco de hospício
Chatterton tomando veneno de rato
Shakespeare um plagiador
Beethoven com a corneta de surdez enfiada na cabeça
a impossibilidade a impossibilidade
Nietzsche totalmente enlouquecido
a impossibilidade de ser humano
demasiado humano
esse respirar
pra dentro e pra fora
pra fora e pra dentro
esses marginais
esses covardes
esses campeões
esses loucos cães da glória
movendo um tantinho de luz rumo a
nós
impossivelmente.

Mercedes Vermelha

naturalmente, nós todos caímos em
baixo-astral, é uma questão de
desequilíbrio químico
e uma existência
que, por vezes,
parece impossibilitar
qualquer chance real de
felicidade.

eu estava num baixo-astral
quando um ricaço escroto
acompanhado de sua inexpressiva
namoradinha
numa Mercedes vermelha
cortou
a minha frente
no estacionamento do hipódromo
o estalo lampejou
no meu íntimo:
vou arrancar o filho da puta
de seu carro e
arrebentar a
cara dele!

segui o sujeito
até os manobristas
estacionei atrás
e saltei do meu
carro
corri
corri até a
porta dele
e puxei.
estava
trancada.
as
janelas estavam
levantadas.
eu bati na janela
do lado
dele:
"abre! eu vou
arrebentar a sua 
cara!"

ele ficou sentado
olhando reto
em frente.
a mulher dele fazia
o mesmo.
eles não me
olhavam.

ele era 30 anos 
mais novo,
mas eu sabia que podia
encarar,
ele era molenga
e mimado.

eu bati na janela
com meu
punho:
"sai daí, seu merda,
ou eu começo a
quebrar
o vidro!"

ele acenou de leve a cabeça
para sua
mulher
eu a vi estender
o braço
abrir o
porta-luvas
e passar para ele o
.32

eu o  vi segurar a arma
junto ao assento
e soltar a
trava de segurança.

fui andando 
em direção ao
clube, o programa
parecia uma
beleza
naquele
dia.

tudo que eu precisava fazer
era
estar lá.



um sorriso para se lembrar



nós tínhamos peixes dourados e eles ficavam dando voltas
no aquário sobre a mesa perto das cortinas pesadas
cobrindo a vista da janela e
minha mãe, sempre sorrindo, querendo que todos nós
estivéssemos  felizes, me disse, 'seja feliz Henry!'
e ela estava certa: é melhor ser feliz se você
pode
mas meu pai continuava a bater nela e em mim várias vezes por semana enquanto
se enfurecia em seus 1,88 de altura, porque ele não conseguia
entender o que estava atacando-o por dentro

minha mãe, pobre peixe,
querendo ser feliz, apanhando duas ou três vezes por
semana, dizendo-me para ser feliz: ‘Henry, sorria!
por que você nunca sorri?’

e então ela sorria, para me mostrar como se fazia, e era o
sorriso mais triste que já vi

um dia os peixes dourados morreram, todos os cinco,
eles boiaram na água, de lado, seus
olhos ainda abertos,
e quando meu pai chegou em casa ele jogou-os para o gato
lá no chão da cozinha e nós observávamos enquanto minha mãe
sorria.

eu

mulheres não sabem como amar,
ela me disse.
você sabe como amar
mas mulheres só querem parasitar.
sei disso porque sou
mulher.

hahaha, eu ri.

por isso não se preocupe terminando
com Susan
porque ela apenas irá parasitar
outro homem.

falamos um pouco mais
então me despedi
desliguei o telefone
fui ao banheiro
e mandei uma boa merda de cerveja
basicamente pensando, bem,
continuo vivo
e tenho capacidade de expelir
sobras do meu corpo.
e poemas.
e enquanto isso acontecer
serei capaz de lidar com
traição 
solidão
unhas encravadas
gonorréia
e o boletim econômico do
caderno de finanças.

com isso
me levantei
me limpei
dei a descarga
e então pensei:
é verdade:
eu sei como
amar.

ergui minhas calças e caminhei
para a outra peça.


O amor é um cão dos diabos (2007, pg. 30)

lamentando e se queixando

ela escreve: você vai
se lamentar e se queixar
em seus poemas
sobre como eu trepei
com 2 caras na semana passada.
eu te conheço.
ela escreve para me
dizer que meu sensor
estava certo -
ela recém tinha trepado
com um terceiro cara
mas ela sabe que não
quero saber com quem, nem por que
nem como. ela encerra sua
carta, "com amor".

ratos e baratas
triunfaram novamente.
aí vem ele correndo
com uma lesma em sua
boca, entoando
velhas canções de amor.
feche as janelas
lamente
feche as portas
queixe-se.


O amor é um cão dos diabos, 2007. (pg. 44)

462-0614

agora recebo muitas chamadas de telefone
todas iguais
"é Charles Bukowski,
o escritor?"
"sim", eu lhes respondo.
e eles dizem que entendem minha
escrita,
alguns deles são escritores
ou querem ser escritores
e estão em empregos estúpidos e
horríveis
e não conseguem nem encarar a sala
o apartamento
as paredes
essa noite...
querem alguém com quem possam
conversar,
não podem acreditar
que não posso ajudá-los
que não conheço as palavras.
não podem acreditar
que agora mesmo
me dobro em meu quarto
segurando minhas entranhas
e dizendo
"Jesus Jesus Jesus,
de novo não!"
eles não podem acreditar
que as pessoas mal-amadas
as ruas
a solidão
as paredes
também são minhas.
e quando desligo o telefone
eles acham que escondi o
jogo.

não escrevo a partir da sabedoria.
quando o telefone toca
eu também gostaria de ouvir palavras
que pudessem aliviar um pouco alguma 
dessas coisas.

é por isso que meu nome está na
lista.


O amor é um cão dos diabos, 2007. (pg. 108-109)

a garota no banco da parada de ônibus

eu a vi quando eu estava na pista da esquerda
indo a leste pela Sunset
ela estava sentada
as pernas cruzadas
lendo um livro de bolso.
era italiana ou indiana ou
grega
e enquanto eu estava parado no sinal vermelho
vez ou outra um vento
erguia sua saia,
eu tinha a visão desimpedida,
revelando
pernas da mais imaculada perfeição
que eu jamais vira.
sou essencialmente tímido
mas olhei e fiquei olhando
até que uma pessoa no carro atrás de mim
começou a buzinar.

isso nunca tinha acontecido dessa
maneira.
dei a volta na quadra
e estacionei numa vaga do
supermercado
bem em frente ao lugar em que ela estava
de óculos escuros
eu não deixava de olhar
como um colegial em sua primeira
excitação.

memorizei seus sapatos
seu vestido
suas meias
seu rosto.

os carros passavam e me bloqueavam
a visão.
então eu a via novamente.
o vento erguia sua saia
para muito além das coxas
e comecei a me tocar.
um pouco antes do ônibus dela aparecer
cheguei ao orgasmo.
senti o cheiro do meu esperma
sua umidade em meu calção
e cueca.

era um ônibus branco e feio
e a levou embora.

dei a ré no estacionamento
pensando, eu sou voyeur pervertido
mas ao menos não me
expus.

sou um voyeur pervertido
mas por que elas fazem isso?
por que têm essa aparência?
por que deixam o vento soprar
assim?

ao chegar em casa
tirei a roupa e fui para o banho
saí enrolado na
toalha
liguei
as notícias
apaguei as notícias
e
escrevi este poema.


O amor é um cão dos diabos, 2007.  (pg. 216 -217)

vulgaridade

ok, aqui eu estou limpando minha bunda e pensando sobre o que há de errado com o 
mundo
mas eu acho que muito do que me incomoda é que eu considero
toda mulher com quem vivi como insana: eu sabia disso para começar
porque elas nunca teriam tentado viver comigo
caso contrário,
por exemplo, linda enviou recentemente um dos meus livros para a mãe dela
e sua mãe ficou ao telefone com ela e disse:
"por que ele não cresce? por que ele continua escrevendo sobre essas
coisas !: vômito e sexo e porcaria e todas aquelas
coisas FEIAS? "
e a pobre linda tentou defender as minhas obras,
ela é uma menina doce e querida,
e elas gritavam uma para outra,
a longa distância.
meu pai costumava gritar a mesma coisa para mim sobre a minha
escrita
mas então me ajude
quando eu escrevo eu não tenho nenhuma ideia que eu estou escrevendo sobre
merda e vômito e foda e assim por diante.
eu não sei,
eu pensei que eu estava escrevendo sobre
circunstância,
uma circunstância que  permitimos destruir a nós
e nós nos tornamos
aparições, e tudo sobre nós
também, até mesmo nossos animais
nossas ruas
nossas casas
nossas transas
então agora eu estou limpando minha bunda
e agora eu estou limpando a
sua.
você não pode detonar o que já foi
detonado, sim.
ainda assim, eu acho que eu vou começar a
levantar  pesos
de novo,
eu tenho 63 anos, mas eu me sinto mais jovem do que a
primavera
sou eu,
mas eu sou sincero quando digo que
quando eu ouço as pessoas dizerem que eu escrevo
sobre  coisas vulgares
eu acho que eles podem estar certos
mas eu não tenho certeza
eu gostaria que a mãe de linda pudesse ter conhecido
meu pai,
eles poderiam ter ficado juntos
nunca cagar, ​​vomitar, amaldiçoar ou
foder,
eles teriam sido totalmente sadios
totalmente
justos.
merda,
sim.

e uma vez que este não é um lugar para
terminar um poema
deixe-me dizer
que pelo meu bem e pelo
seu
vamos ser felizes
de qualquer maneira
pela
merda
mijo
vômito
foda
merda merda merda merda merda
e que os leitores
comprem os livros
não os críticos
que  obtém
de graça
até o
cu cu cu cu cu

cu.

Traduzido do original: http://bukowski.net/manuscripts/displaymanuscript.php?show=poem1984-02-29-vulgarity.jpg&workid=4448

agnóstico

li outro dia
que um homem queria exorcizar o diabo
de seus dois filhos
então ele amarrou-os a um forno de chão e
torrou eles até a morte .
 
suponho que para acreditar no diabo
você tem que acreditar em Deus
primeiro.
 
eu fui ensinado a capitalizar "Deus"
e alguns diriam
que desde que eu faço  isso
é prova suficiente .
 
enquanto isso, eu uso o meu forno para me manter
aquecido
e eu fico de fora de
Argumentos.

Traduzido do Original: http://bukowski.net/manuscripts/displaymanuscript.php?show=poem1982-01-26-agnostic.jpg&workid=494

Chopin Bukowski

este é meu piano.

o telefone toca e as pessoas perguntam,

o que você está fazendo? que tal
encher a cara com a gente?

e eu digo,

estou ao piano.

o quê?


desligo.


as pessoas precisam de mim. eu as

completo. se não podem me ver
por um tempo ficam desesperadas, ficam
doentes.

mas se as vejo muito seguido

eu fico doente. é difícil alimentar
sem ser alimentado.

meu piano me diz coisas em

troca.

às vezes as coisas estão

confusas e nada boas.
outras vezes
consigo ser tão bom e sortudo como
Chopin.


O Amor é um Cão dos Diabos  (2007, pg. 98)

ignis fatuus

a única solidão é
sono ou morte
nós não éramos inteligentes o bastante
gentis com os outros e cruéis para si mesmo
quando pedimos a nós mesmos por misericórdia
e isso foi negado

a mais sagrada privacidade permanece
nos esperando
e tudo que foi
incompreendido ou abandonado
se reunirá

deixe meu fracasso ser sua sorte
isso que foi um quebrado
e descuidado
erro

que seja conhecido
que saber sua própria morte
é morrer duas vezes
uma vez realmente
e então, quase nada

que seja conhecido
que não há nada tão feio
em tudo que é tangente
como a besta humana
um truque definido contra o sangue de sua alma

que seja conhecido
que a solidão é a única
misericórdia
e a única
amante

que seja conhecido
que um homem não precisa ser Cristo
para ser crucificado

que seja conhecido
que um homem pode ser
crucificado
a cada dia
a cada momento
a cada respiração
de sono e vigília
e então ser atormentado novamente

que seja conhecido
que um homem pode morrer
e morrer
e morrer
e morrer
e ainda sentir a dor
e saber que está morto
e ainda sentir a dor
e saber que não há nada que ele possa fazer
e ainda  sentir
a dor
que seja conhecido

que seja conhecido
que os templos não são nada
e os sinos não são nada
e a fama não é nada
e a vitória não é nada
e o sexo não é nada
e que a solidão traz loucura
e a multidão traz loucura
e bebem  e comem o corpo
como um tigre
que não há nenhuma voz para falar com
nenhum ouvido para ouvir

que seja conhecido
que haverá outros homens como eu
levantados  para a boca dos leões
queimados  por falsos amores
enganados por gentileza
alvejados pelo intelecto
tontos por ramalhete
sacrificados para o lucro
utilizados como mão de obra barata
e estes serão os mais gentis dos acontecimentos
em comparação com o que vai entrar no olho
e na orelha
e no cérebro
e escoar para as entranhas para começar seu
trabalho de morte
eu tenho pena que todos esses meus irmãos
que vão me seguir nos séculos
Incapazes de amar, porque não há nada para amar
Incapazes de matar, porque não há nada vivo
Para sempre pendurados e
sangrando e tontos
Pela besta
humana
as paredes
os jardins
o sol
as flores
os beijos
as bandeiras
os mares
os animais
a comida
os licores
as pinturas
as sinfonias
tudo inutilidade

que seja conhecido
que a maioria dos homens
adoram quando podem ver
e eles vêem uns aos outros
e eles adoram isso
porque eles vêem muito pouco

que seja conhecido
que eu sou amargo
e condenado
e cansado
e inútil

que seja conhecido
que quando a esperança final se vai
lá permanece, mas olhando para a dança
e observando a relação fraca
dos idiotas
com muito pouco anotações

que seja conhecido
que eu estou morto
mas não existe raiva

que seja conhecido
que a maioria dos homens estão mortos
muitos anos antes do enterro

que seja conhecido
que muitos homens morrem na infância
que muitos homens nascem mortos
embora as suas partes se movam
e fazem som
e crescem
e avançam
no comportamento adulto
e fazem  as coisas da
civilização

Que seja conhecido
que estes homens nunca existiram
e que seus funerais
foram  enormes farsas
e também as lágrimas mortas
para o já morto

que seja conhecido
que os próprios vermes
estavam mais perto da verdade
na medida em que
não
choram

que seja  conhecido
que o nascimento não é santo
que a morte não é santa
que a vida não é santa

que seja conhecido
que eu tenho sangrado sem coroas
que  eu vou sangrar em um momento
que eu vou sangrar para sempre
vermelho
vermelho
vermelho
e os falcões vão dançar
dentro dos meus ossos
e regozijar

que seja conhecido
que eu não morra pelos pecados do homem
mas que eu morra pelo o quê o homem é
e para o que eu quase fui
eles- muito pouco de qualquer coisa
em mim mesmo levantou o suficiente
para ver o horror
o adoecer
e enlouquecer
e murchar

não tome como pessoal
o que eu digo sobre a vida
completamente
ou o homem
completamente
a não ser que
em outro plano
você se considera
um defensor da vida e do homem
o que é apenas uma outra fraqueza natural das espécies
como um rato guardando seu ninho
e para o qual
eu não posso te culpar totalmente

a única solidão é a morte
mas não esta morte
não esta morte
não
esta

morte.


 https://www.youtube.com/watch?v=EpnHMH1Crhg